A Faculdade de Filologias Clássicas e Modernas acolheu os tradicionais Dias da Lusofonia, que se realizaram online durante o mês de novembro de 2020. O ciclo de eventos foi organizado pela Filologia Portuguesa junto ao Departamento de Estudos Hispânicos e Lusófonos conjuntamente com a Cátedra de Investigação José Saramago, estabelecida em 2019 através de um protocolo de cooperação entre a Universidade de Sófia e o Camões – Instituto de Cooperação e da Língua de Portugal.
O programa dos Dias da Lusofonia incluiu conferências de três destacados investigadores das literaturas e culturas de língua portuguesa. A Prof.ª Dr.ª Isabel Pires de Lima, o Prof. Dr. Petar Petrov e o Prof. Dr. Istvan Rakoczi participaram nos Dias da Lusofonia com transmissões ao vivo do Porto, de Lisboa e Budapeste. As conferências, proferidas em salas virtuais, contaram com a presença de estudantes de licenciatura, mestrado e doutoramento e docentes do curso de Filologia Portuguesa da Faculdade de Filologias Clássicas e Modernas, estando também presente a diretora do Camões – Sófia, Centro de Língua e Cultura Portuguesa junto à Embaixada de Portugal em Sófia e leitora de Português na universidade Dr.ª Anaísa Gordino. A moderação dos eventos esteve a cargo da Prof.ª Dr.ª Yana Andreeva, Coordenadora da Filologia Portuguesa e da Cátedra José Saramago.
Na sua saudação aos conferencistas e participantes dos Dias da Lusofonia, a Decana da Faculdade de Filologias Clássicas e Modernas Prof.ª Dr.ª Madeleine Danova manifestou a sua satisfação pelo facto de que apesar dos desafios da situação pandémica atual na faculdade está a realizar-se mais uma edição anual deste fórum já tradicional que promove o intercâmbio científico e educacional. Agradeceu aos organizadores o empenho em manter a tradição de celebrar todos os anos os Dias da Lusofonia, para que os alunos da Faculdade de Filologias Clássicas e Modernas possam conhecer a riqueza e os avanços das culturas lusófonas.
A primeira conferência do programa dos Dias da Lusofonia foi proferida pela Prof.ª Dr.ª Isabel Pires de Lima, Professora Emérita da Universidade do Porto e Doutora Honoris Causa da Universidade de Sófia, e foi intitulada “A Queda de um Anjo – Queda ou Libertação?”. A Prof.ª Pires de Lima apresentou a obra narrativa de um dos ficcionistas mais importantes do mundo lusófono – o clássico português da época do Romantismo Camilo Castelo Branco. Concentrando-se em particular em “A Queda de um Anjo”, a Prof.ª Pires de Lima delineou as caraterísticas gerais da novela de Camilo e suas manifestações específicas no texto: um enredo complexo; ação construída linearmente; ritmo narrativo acelerado; representação concisa dos personagens, a fim de destacar os sentimentos obsessivos que os dominam; narrador interferindo em julgamentos irónicos ou emocionais; linguagem rica, combinando retórica sublime com discurso coloquial. Apresentando sua tese sobre o „romantismo realista“ ou „realismo romântico“ de Camilo, a Prof.ª Isabel Pires de Lima destacou as profundas contradições ideológicas do protagonista do romance, em cuja figura os pesquisadores da obra de Camilo encontram nítidos traços da personalidade do autor.
A evolução ideológica do personagem revela os traços opostos que fazem de Calisto Elói um homem entre duas épocas antagónicas, como o foi o próprio Camilo Castelo Branco, nas palavras de Isabel Pires de Lima. Essas oposições revelam-se entre a ética aristocrática conservadora subjacente à educação rígida do herói e a sua tentação de ceder aos apelos de Eros e ao luxo imposto pelas formas de entretenimento e pelos padrões de conforto material importadas do estrangeiro; entre o conhecimento erudito dos clássicos e o crescente interesse pela língua francesa, identificado com o novo modo de vida burguês; entre o uso do português clássico e até anacrónico e o subsequente fascínio por estrangeirismos; entre o desprezo pelo progresso e pela modernização da atrasada realidade portuguesa e o fascínio por todas as inovações da moda e da indústria estrangeiras; entre o conservadorismo político e as ideias do liberalismo; ainda entre o compromisso de tipo feudal com o Trono e o Altar e o estilo burguês e livre de vida social.
Depois de acompanhar os sentidos da metamorfose de Calisto Elói, na parte final de sua conferência a Prof.ª Pires de Lima formulou uma das hipóteses interpretativas possíveis, de que o anjo, desvinculado da realidade imaginária dos livros, tornou-se um jovem fortemente apegado à vida. As ideias aprendidas, adotadas dos livros na leitura solitária, dão lugar à comunicação com o outro na vida real e esse é o caminho para a emancipação do ser humano.
O Prof. Dr. Istvan Rakoczi da Universidade Eotvos Lorand-ELTE em Budapeste proferiu a conferência “Continuidade dos parques – os painéis históricos de Françoise Shein como uma história interativa de Portugal e seus espaços ultramarinos“. Ele apresentou um breve panorama histórico das celebrações durante o século XX dos Grandes Descobrimentos Portugueses e a presença do tema dos Descobrimentos em alguns parques urbanos que são espaços emblemáticos da capital portuguesa. O Prof. Rakoczi examinou os sentidos da representação artística da empresa globalizante dos navegadores portugueses durante os séculos XV-XVI, presentes nos painéis decorativos de cerâmica da artista francesa Françoise Shein, que revestem as paredes da estação de metro Lisboa Parque, construída em 1959 e renovada em 1994.
Estabelecendo uma analogia com as ideias do filósofo português José Gil, o conferencista apresentou o espaço da estação de metro Parque como um espaço de reflexão e um espaço de transição, no qual decorrem os processos de síntese, desconstrução e construção da história. Como historiador da literatura, o Prof. Istvan Rakoczi destacou em primeiro lugar, entre as imagens presentes nos painéis de cerâmica, os títulos de textos clássicos dedicados aos descobrimentos portugueses e à expansão territorial do Império Português durante o Renascimento. A palestra abordou também as imagens de signos e símbolos cartográficos, religiões e culturas mundiais, bem como as diferentes representações de globos terrestres que testemunham as etapas da história da ciência cartográfica. Em conclusão, o Prof. Rakoczi enfatizou a natureza dinâmica e dialética desta “historiografia” em cerâmica, que segundo palavras da própria Françoise Shein tem por objetivo, através de projetos artísticos como esse, inscrever a Declaração Universal dos Direitos do Homem no espaço urbano e quotidiano de grandes cidades do mundo como Paris Bruxelas, Haifa, Lisboa e outras.
Na sua conferência “Trajetórias do Conto Brasileiro” o Prof. Dr. Petar Petrov do Centro de Literatura e Culturas Lusófonas e Europeias da Universidade de Lisboa apresentou um panorama histórico do desenvolvimento do género na literatura brasileira. Brasil. Abordando alguns dos principais exemplos do género da segunda metade do século XIX até ao final do século XX, o Prof. Petrov examinou as obras de contistas brasileiros proeminentes de diferentes períodos histórico- literários e de diversas correntes estéticas.
Apresentando os contos “A Cartomante”, “Teoria do Medalhão” e “Missa do Galo”, do fundador do conto brasileiro contemporâneo, Machado de Assis, o conferencista ilustrou as técnicas mais características do autor na construção dos mundos ficcionais das suas obras, nomeadamente a ação condensada e o enredo simplificado, que privilegia o acontecimento acidental apresentado como uma espécie de clímax na vida do protagonista. Os personagens de Machado são geralmente representantes da classe média do Rio de Janeiro, e a descrição de seu comportamento diário e da sua moral ilustra a crítica do autor à população urbana rica do Brasil Império. A palestra focou mais três figuras de escritores que protagonizaram a história do género no Brasil e a sua renovação durante a segunda metade do século XX.
Nos contos de Clarice Lispector evidencia-se o modelo da prosa psicológica sob a influência do existencialismo dos anos ’60. O enfoque no mundo íntimo das personagens, na maioria das vezes donas de casa da grande cidade, bem como a escrita assimétrica e fragmentada, enfatizando o detalhe e a dualidade, constroem a poética introspetiva e subjetivista de Lispector. O Prof. Petrov também abordou os contos regionalistas de Guimarães Rosa, destacando como seus temas caraterísticos a infância, as viagens e o crescimento, que se desdobram no cenário do sertão brasileiro, onde pastores, caçadores, pedreiros, ciganos, fugitivos da justiça, cegos, bandidos e assassinos vivem no mundo arcaico de muitos outros personagens também anónimos. Por meio da sua história mitopoética esses personagens de Rosa revelam a visão de mundo do brasileiro do interior do país e a imagem profunda do próprio Brasil.
Na parte final de sua palestra o Prof. Petar Petrov apresentou alguns textos de Ruben Fonseca, sublinhando que no estilo do hiper-realismo os contos do autor refletem a realidade repressiva e violenta durante a ditadura militar brasileira, mas também permitem a analogia com a realidade mais atual. Afetados pela alienação e pela violência, os personagens de Ruben Fonseca sufocam em seu ambiente urbano fechado, o que os condena à exclusão social e à marginalização. Seu confronto com esse ambiente provoca a violência tão caraterística das grandes cidades brasileiras e, ao mesmo tempo, expressa o extremo desamparo de personagens marginalizados diante de um sistema dominado por formas decadentes de cultura de massa e aguda injustiça social.